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Uma narrativa da pandemia

abril 16th, 2020

Berenice Sica Lamas*

001 bereNos aeroportos o cenário já me parecera realidade paralela de ficção científica. Estaria eu personagem de um filme ou de um livro? Evocava Ray Bradbury, Isaac Asimov, Poul Anderson. Todo mundo de máscara, alguns de luva. Pessoas quietas, silenciosas. Tentando manter espaço entre si. Cenário fantasmagórico. Estranhamento total.

Primeiro paraliso me concentrando apenas em estar ali, me dou uns momentos para sentir que estou em casa, do ângulo em que me encontro observo a sala e a cozinha. Há algumas horas atrás saíra do hotel com o motorista da empresa para o aeroporto. álcool em gel, lavar as mãos com sabão.

Segundo, observo mala, mochila e bolsa na porta, levo para a área de serviço, esvazio e coloco quase tudo na máquina de lavar. Passo álcool em gel, água sanitária. Papéis, computador na bancada de pedra na cozinha, descalço os tênis também na área. Limpo as solas. Estão lá até hoje, abertas, higienizadas e não tenho coragem de guardá-las. Idem os tênis. Não toquei mais, até parece trauma.

Terceiro, olho a geladeira, o freezer, bem abastecidos. Na véspera meu filho cozinhara e levara mantimentos e me dissera ao telefone: – “quando chegares, tu não sais mais”! Frango ao catupiry, carne assada ao molho, arroz, lentilha, lasanha, vários potes. Frutas, legumes, ovos, leite, massa, mel. Produtos de limpeza. Filho de ouro. Começo a conscientizar o que poderia significar uma quarentena.

Quarto, enfim o tal banho sanitário e troca de roupa. Mais itens para a máquina de lavar. E vou descansar, que o primeiro voo saíra as 3 da manhã e eu estou insone.

Começo a trabalhar online, o que já costumo fazer. Revisões e orientações, álcool em gel, lavar as mãos com sabão, relato do trabalho realizado que realizara em março álcool em gel, lavar as mãos com sabão. Telefonemas e mensagens de whatsapp, álcool em gel, lavar as mãos com sabão, noticiários na TV e séries e filmes na Netflix, sarau literário por google meet, como é bom rever o grupo, mais disciplinado do que nunca por conta do encontro virtual, ninguém fala ao mesmo tempo, parabéns um aninho do sobrinho neto by encurtador online engarrafamento de familiares na tela álcool em gel, lavar as mãos com sabão, vídeo chamada por hangout com família. Caminho, danço. Em casa.

Penso que nossa geração – alvo principal do vírus – tem que ceder o bastão prematuramente à geração dos filhos que nos ajudam agora, somando-se aos cuidados com seus próprios filhos, nossos netos. Não podemos mais ajudá-los como antes. Essa inversão me incomoda, eles estão sobrecarregados com duas gerações nas costas. Que vírus danado. Que mexida na ordem, que caos instalado. No 4º dia senti tontura, caminho meio torta pela casa, chequei se seria sintoma do corona, mas não. Qualquer arranhadinho na garganta lá ia eu para o termômetro. E vá gargarejo com água morna e sal. Litros de chá e água. Como tenho rinite alérgica e tosse de refluxo, às vezes pensava, será o corona?

Comecei a reler Camus, sua Peste. O próximo será Boccaccio, seu Decameron. Somente para combinar com a realidade. E dê-lhe desinfecção, álcool, água sanitária, desinfetante. E não deixar louça suja, meu pior pesadelo: o tempo de cozinha, de máquina de lavar, de limpar a casa, de lavar gêneros alimentícios. Essa higienização diária vai me deixar maluca.

Inicia uma reconstrução do dia a dia, novo cotidiano, álcool em gel, lavar as mãos com sabão. Enclausurada, sem liberdade de ir e vir. Em contrapartida, outras liberdades a serem exercidas. Não me abato. Mas reconheço que me sinto controlada. Sem saber que novo mecanismo é esse.

Gosto de estar em casa sozinha. Sempre tenho mil coisas para fazer, pensar, imaginar, arrumar, organizar, ler. Porém esse jeito compulsório e com esse vírus lá fora ameaçando, não é nada confortável. Gosto de estar com meus netos, agora somente por vídeo chamadas. Me sinto espionando suas brincadeiras, participação virtual.

Mais uns dias e as contas começam a chegar. Não usar aplicativo de banco pode ser uma limitação. E os papéis para o imposto de renda? Motoboy será a solução, álcool em gel, lavar as mãos com sabão.

O cara da fruteira se despediu após me entregar as sacolas no portão do edifício, e depois do ritual do pagamento com a maquininha envolta em papel filme (será q adianta?), ia saindo com meu cartão enfiado na máquina. Gritei, ei, meu cartão! Ele se voltou pedindo desculpas. Todo o mundo atrapalhado, álcool em gel, lavar as mãos com sabão.

Passa um carro com alto falante de som metálico que proclama: Fiquem em casa! Fiquem em casa! Recordo de imediato o chamado para o circo de minha infância. Uso máscara e luvas quando desço p colocar o lixo e buscar a correspondência e o jornal. O novo mundo com coronavírus. Álcool em gel, lavar as mãos com sabão. A vida em suspenso. A rua antes tão disputada para estacionamento, agora vazia, desfigurada.

Finalmente os 14 dias!! para ter certeza de que não retornei da viagem infectada. Mas não consigo me sentir aliviada. “O mundo como o conhecemos, não existe mais”, ouço na TV. Frase forte. Meu sistema imunológico fraco.

Aglomerações, não uso de máscara, quebra do isolamento social. O ser humano se mostra mais onipotente, ignorante e alienado como nunca. Mecanismo maciço de negação. Mais do que medo… O corona já captura mais de dois milhões de habitantes do planeta e o nº de mortos ultrapassa os cem mil e trezentos, até o fechamento deste relato. Não adianta buscar bodes expiatórios, precisamos de ação, ação!! Um viruzinho que nem vivo é, uma proteína revestida, um micro organismo invisível, tão letal e perigoso. Colocando o mundo de joelhos. Tive que adicionar seu nome ao dicionário do meu computer. Às vezes ainda perpassa uma sensação de irrealidade. Pandemia.

Zanzo pela casa durante o dia passando por diversos estados de espírito: indignada, perplexa, compassiva, alarmada, vulnerável, repugnada, assustada, raivosa, envergonhada, fragilizada, impotente, raramente tranquila (meu professor de oficina literária Assis Brasil diria: menos enumeração, Berenice), álcool em gel, lavar as mãos com sabão. Respira a terra, gorjeiam as águas, limpa-se o ar. E morrem as pessoas.

Minhas mãos nunca estiveram tão cheirosas nas 24 horas do dia. Mesmo cortando cebola, elas rescendem a perfume.

Mordo a cenoura crua, cansada de lavar panelas. Meus dentes hão de aguentar.

*Psicóloga e escritora